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Foto do escritorMárcio Leal

Ilha de Gorée, no Senegal, é memória da escravidão negra



Um sobrado colonial, de frente para o mar, construído em 1776 pelos então colonizadores holandeses na Ilha de Gorée, serviu como masmorra para escravizados, na parte térrea, e residência dos algozes europeus, no primeiro andar. Ponto alto e dramático de quem visita a ilha, a Casa dos Escravos é o museu que conta a história da escravização negra em detalhes.


Na entrada da casa, uma mensagem do sul-africano Nelson Mandela aos povos é exibida em destaque: "Pois ser livre não é apenas livrar-se das correntes, mas viver de uma forma que respeite e valorize a liberdade dos outros".


A pequena ilha de Gorée, com cerca de 1 milhão de habitantes, fica a 3 quilômetros do porto de Dacar, metrópole de mais de 3,5 milhões de habitantes e capital do Senegal - quase 20 minutos de viagem de barco. Por sua localização privilegiada, relativamente distante da costa para se fugir nadando e de frente ao mar aberto do Oceano Atlântico, foi um ponto importante de embarque forçado de africanos para as colônias europeias nas Américas.


Esse é o maior crime contra a humanidade já cometido em todos os tempos: a escravização de negros africanos e seu comércio ilegal para as Américas, que perdurou por cerca de 350 anos, entre os séculos 16 e 19. Foram cerca de 13 milhões de africanos levados à força para servirem como escravos nas Américas, sendo que por volta de 2 milhões morreram apenas na travessia marítima, que levava cerca de três meses. O Brasil foi o destino de cerca de 40% dessas pessoas, segundo historiadores.

"Gorée não foi o único, mas foi um dos mais importantes centros de comércio de escravos na África. Geograficamente, se você olhar o mapa, verá que o Senegal é a região mais a oeste. Senegal está muito perto das Américas, em um ponto estratégico de parada das embarcações para reparos, ajustes e carregamento de mercadorias antes da viagem", explica o guia Mamadou Bailo Diallo.


Nas celas na parte térrea, as famílias escravizadas eram colocadas separadamente: mulheres, homens, crianças de até 12 anos e meninas adolescentes virgens. Cada grupo era colocado em uma masmorra de não mais do que 20 metros quadrados, com paredes de pedras, onde ficavam de 20 a 40 pessoas amontoadas.


Quem pesava menos de 60 quilos, era alimentado forçadamente com feijão para atingir o limite mínimo de peso, para então poderem ser embarcados para as Américas. Quem desafiava o jugo dos colonizadores era severamente punido e trancafiado em um cubículo ainda mais apertado, com menos de um metro de altura e sem janelas, onde só é possível ficar sentado ou agachado.


Quando visitou a casa, nos anos 1990, Nelson Mandela desafiou o protocolo e entrou em um desses cômodos. "Ele permaneceu ali por cerca de três minutos e quando saiu, estava em prantos", relata o guia, ao lembrar que Madiba, como Mandela era chamado na África, ficou 27 anos presos por lutar contra o regime segregacionista do apartheid em seu país.


No andar de cima, onde moravam os colonizadores, uma ampla sacada com vista para o mar servia de camarote para assistir o embarque dos africanos. Os brancos europeus também se serviam das adolescentes virgens que ficavam presas juntas em cômodos do andar inferior. "Eles desciam, escolhiam a vítima e levavam para cima", conta Diallo.


Porta do não retorno


Ao fundo da casa, uma porta dá para o mar. Uma placa na parte superior da saída traz a frase sugestiva: “Porta do não retorno”. Dali se estendia uma ponte de madeira (que não existe mais) em direção à caravela que levaria o africano para sempre de suas terras.


"O apagamento da identidade começava ali, quando o escravizado é rebatizado com um nome. Se fosse o colonizador português, recebia um nome português. Se fosse o colonizador francês, um nome francês. E assim por diante", explica o guia senegalês Mamadou Diallo.


Não havia como escapar. A travessia até o barco era feita com a vítima amarrada por grilhões no pés a uma bola de ferro que pesava exatamente 10,3 quilos. Em um corredor lateral, atiradores com espingardas ficavam posicionados para atirar, se fosse necessário. Se tentasse fugir, pulando no mar, a bola de ferro impediria a pessoa de nadar e ela morreria afogada. Havia também a presença constante de tubarões.


Pedido de desculpas


Em 1992, quando visitou a ilha, o papa João Paulo II se emocionou e pediu desculpas pelo papel da igreja cristã ao longo de todo o período da escravização. "Um pedido de desculpas que demorou 400 anos", afirma Diallo.


A Casa dos Escravos já foi visitada por inúmeros chefes de Estado, como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ex-presidente dos EUA Barack Obama. Artistas também já estiveram lá, incluindo o lendário grupo musical Jackson Five, nos anos 1970, com a presença do ainda garotinho Michael Jackson.


Carisma senegalês


Descoberta em 1444, a ilha de Gorée foi invadida e colonizada por portugueses em 1536, mas acabou sendo dominada por diferentes países europeus: Inglaterra, Holanda e, finalmente, França. A independência do Senegal só foi conquistada em 1960, mais de um século depois do fim da escravização, quando estava sob domínio francês, que legou ao país o idioma oficial e uma intrínseca relação econômica e política.


Declarada como Patrimônio Mundial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), ainda nos anos 1970, Gorée recebe com entusiasmo seus visitantes. Ainda do barco, já é possível avistar as belas casas coloniais coloridas e um forte erguido nos tempos de colonização francesa da região.


Ao desembarcar, o visitante é recebido com sorriso no rosto pelos habitantes locais, muitos dos quais vestidos com roupas típicas africanas. A hospitalidade e o carisma senegaleses têm nome: teranga. Palavra da língua Wolof, falada amplamente pela população (o idioma oficial é o francês), designa o estilo acolhedor, pacífico e simpático do povo, especialmente com os visitantes.


Artesanato de todos os tipos, obras de arte como pinturas, pequenas esculturas e desenhos, instrumentos musicais, além de roupas, tecidos, comida e outros objetos são oferecidos a turistas. Outro patrimônio natural da ilha são as dezenas de baobás, árvore lendária de grande porte, com seu tronco barrigudo, considerada mística e sagrada por diferentes povos africanos.


Pitoresca e aconchegante, Gorée tem casas de hospedagem e restaurantes que tornam uma permanência de alguns dias ali uma opção interessante para quem visita e quer conhecer de forma mais aprofundada a história da escravidão nas Américas.


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