Cristina Martins Fargetti*
Certa vez, um colega que cantava em coral me pediu ajuda para traduzir a letra de "Nozani-ná" — composição de Villa-Lobos em arranjo de canção coletada por Roquette-Pinto entre os Paresí, um povo indígena que hoje se concentra na Reserva Pareci, no Mato Grosso. Afinal, como sou pesquisadora de língua indígena, isso não deveria ser problema para mim, ele pensou.
Contudo, expliquei a ele que um pedido como esse equivaleria a eu lhe pedir que traduzisse uma canção em língua alemã do século 19. E, concluindo nossa absurda conversa, eu disse a ele: "Se você é falante de uma língua europeia (língua portuguesa), isso não deve ser problema para você!"
Os povos indígenas brasileiros e suas línguas e culturas são desconhecidos da maioria da população, que pouco sabe sobre a diversidade linguística desses povos, donos de uma riqueza imensa de línguas (inclusive línguas indígenas de sinais). E a falta de informação leva muita gente a pensamentos como o do meu colega: línguas indígenas são o mesmo que dialetos, ou seja, são quase a mesma coisa, não se diferenciam.
A verdade é que as línguas indígenas são muito diferentes entre si e não é possível a um pesquisador conhecer todas elas. Existem hoje no Brasil cerca de 180 línguas indígenas sendo faladas. E esse número já foi muito maior: estima-se que o país já abrigou mais de mil línguas indígenas. Muitas dessas línguas morreram por causa da extinção dos povos e da falta de políticas que as valorizassem e as fortalecessem.
Apesar do enorme desconhecimento e dos preconceitos ainda existentes, hoje temos alguns motivos para acreditar em dias melhores para os povos indígenas, inclusive com relação a políticas linguísticas. Estamos no segundo ano da Década Internacional das Línguas Indígenas (2022-2032), estabelecida pela Unesco. E muitas decisões políticas recentes que foram tomadas no país reconhecem os direitos dos povos originários, tendo em vista a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, promulgada em Barcelona, Espanha, em 1996.
Em 2010, foi proposto o Inventário Nacional da Diversidade Linguística Brasileira (Decreto nº 7.387, de 9 de dezembro de 2010, assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva). Contudo, o Inventário recebeu revogações em 2022, pelo presidente Jair Bolsonaro, e, apesar dos projetos/estudos piloto (de que pude participar, entre 2009 e 2010, com apoio do IPHAN), não teve ainda sua implementação no nível nacional.
Ainda há, portanto, um longo caminho até que a população conheça a beleza, a riqueza e a grande contribuição das línguas indígenas à nossa identidade, como brasileiros, e possa trocar o preconceito por admiração e respeito pelos povos originários do Brasil.
Minhas vivências e pesquisas entre os Juruna
Sou pesquisadora da língua Juruna, da família Juruna, Tronco Tupí, desde 1989, quando tive meu primeiro contato direto com o povo Juruna. Atualmente, o povo Juruna, falante dessa língua, mora no Território Indígena do Xingu, no estado do Mato Grosso (há um grupo juruna no Pará, que, atualmente, desenvolve projetos de retomada de sua língua ancestral, que não era mais falada entre eles há bom tempo, com a participação dos juruna xinguanos).
Como linguista, iniciei com os estudos fonético e fonológico, procurando compreender o sistema de vogais e de consoantes da língua. Continuei com a investigação da sua gramática. A língua Juruna apresenta algumas características interessantes: é tonal, assim como línguas como o mandarim, com dois tons fonológicos, tendo o acento de intensidade como previsível pela alternância dos tons baixo e alto; apresenta nasalidade distintiva, ou seja, a nasalidade de uma vogal pode causar diferença de significado (como em português: lá x lã), podendo essa nasalidade se espalhar pela palavra toda (como ocorre em outras línguas como o guarani, embora em processos diversificados); duração vocálica também causa diferença de significado (no latim, havia isso também, com a diferença entre vogais longas e vogais breves); com ordem sintática não-marcada SOV (ou seja, numa oração, em geral, tem-se a ordem sujeito-objeto-verbo, como em muitas línguas do mundo, mas que causa estranhamento para falantes do português, acostumados com a ordem SVO – sujeito-verbo-objeto); apresenta processo de reduplicação muito produtivo (em que sílabas de uma palavra podem ser duplicadas, mas, em geral, não a palavra toda, como “pisca-pisca”, em português), entre outros aspectos que a diferem de línguas românicas, como a portuguesa.
Contudo, como língua e cultura estão sempre relacionadas, meus estudos como linguista sempre incluíram o diálogo com aspectos da cultura desse povo. Por isso, fui aos poucos entendendo conteúdos relacionados a conhecimentos de astronomia, botânica, música, entre outros. Esse diálogo me levou a entender questões como a cosmovisão do povo juruna e seus costumes.
Entre meus estudos, está o das cantigas de ninar dos jurunas (que não são cantigas infantis). O gênero “cantigas de ninar”, para esse povo, tem particularidades muito diferentes: elas não podem ser cantadas à noite, porque podem causar a morte ou sério malefício a quem as ouve; muitas apresentam falas de bichos, em uma forma da língua juruna agramatical; e em geral elas apresentam relações com histórias antigas. Apesar das especificidades, pude observar algumas semelhanças universais do gênero: o andamento do canto é lento, a melodia é sentida como um tanto triste, o ritmo se mantém nas várias repetições. Isso porque, para embalar o sono, o cântico deve ser suave e calmo, pois, do contrário, não cumprirá seu objetivo de acalmar e adormecer.
É um grande privilégio poder ter acesso a esses conhecimentos incríveis, que me foram ensinados por sábios detentores de muita paciência, que me aceitaram como uma estudante pouco eficiente, uma vez que sua cultura sempre foi baseada na tradição oral, que exige uma boa memória. Eu, como representante do “povo do papel”, não a possuo, se comparada à fabulosa capacidade de memorizar que estes sábios detêm. Com muita compreensão, eles se dispunham e se dispõem a me ensinar, a repetir muito, mesmo eu tendo anotado e gravado tudo. Portanto, são, antes de mais nada, grandes professores e leais amigos.
Dicionário de termos da cultura material/artesanato
Nos últimos anos, tenho refletido principalmente sobre os Estudos do Léxico, que abrangem: Lexicologia, Lexicografia, Terminologia, Terminografia. Grosso modo, a Lexicologia compreende o estudo das palavras de uma língua, incluindo sua formação; a Lexicografia constitui a ciência da elaboração de dicionários de léxico geral de uma língua; a Terminologia constitui a ciência de estudo do léxico específico, dentro de uma ciência/saber; e a Terminografia é a ciência da elaboração de dicionários de léxico específico (por exemplo, um dicionário de termos específicos da área de odontologia). Terminologia e Lexicologia dialogam e as fronteiras entre elas podem ser às vezes reduzidas.
Um estudo terminológico pode ser incorporado em um dicionário geral da língua, que é uma obra lexicográfica (como, por exemplo, o dicionário Houaiss, da língua portuguesa).
Para trabalhos lexicográficos e terminográficos, cujos resultados geralmente são dicionários, pressupõe-se a existência de grandes bancos de dados compostos de textos escritos (milhões e milhões de ocorrências nas mais variadas publicações). Contudo, se este pressuposto for uma exigência, podemos nos perguntar: línguas indígenas teriam a possibilidade de estudos de seu léxico? Esta pergunta surge porque, em sua maioria, tais línguas não contam com muita publicação escrita; muitas delas, aliás, não têm qualquer estudo científico ainda e, portanto, há falta de bancos de dados, entre outros problemas.
Com essas questões em vista, propus o conceito de terminologia etnográfica, que entende que um termo, além de estar ligado à gramática de uma língua (tal qual sua função como palavra), está ligado também à cultura do povo que fala essa língua. Tal cultura tem suas próprias ciências/saberes, que são passíveis de compartimentalização, uma vez que contam com sábios. Portanto, podemos, sim, criar dicionários de termos específicos dos diversos conhecimentos indígenas.
Para se chegar a terminologias bem elaboradas, deve-se então lançar mão da Etnografia, metodologia amplamente desenvolvida pela Antropologia. Portanto, o que a abordagem da Terminologia Etnográfica poderia trazer de contribuição? Uma compreensão diferenciada de saberes dos povos originários, procurando, realmente, estar mais livre do etnocentrismo, ou seja, mais livre do preconceito de que existiria apenas um saber científico válido (o saber ocidental, de origem europeia) e, por isso, com mais possibilidade de apreender saberes e línguas diferentes do que se tem conhecido e se tem registrado há séculos.
Foi a Terminologia Etnográfica que embasou a produção do livro, que concluí recentemente, Terminologia da cultura material Juruna: um dicionário das artes do povo juruna. O que é comumente chamado artesanato é, mais apropriadamente, chamado cultura material de um povo, que compreende os artefatos produzidos por ele, em geral de forma manual, sem o uso de máquinas, e, portanto, não advindos de processo industrial.
A obra traz um tratamento diferenciado ao assunto, tanto em termos linguísticos, quanto em termos antropológicos. As descrições constantes dos verbetes surgiram de ampla pesquisa, procurando contemplar aspectos além do material, em busca do simbólico e abstrato, o que pode ser observado desde a forma de ilustrar as peças, em geral por fotos que as mostrem em uso, até as discussões de detalhes como a mitologia por trás do ato de tecer uma peça em fios de algodão: trabalho aprendido com a mestra aranha tecelã.
(*) Cristina Martins Fargetti é professora do Departamento de Linguística, Literatura e Letras Clássicas, Universidade Estadual Paulista (Unesp)
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